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Pandemia abre brecha para a corrupção no Brasil

Com a dispensa de licitação autorizada pelo decreto de calamidade, multiplicam-se as suspeitas de desvios de dinheiro público em estados e municípios

Lagoa de Dentro, município com pouco mais de 7 mil habitantes no interior da Paraíba, concluiu no dia 22 de abril uma de suas principais compras na área da Saúde em 2020. Em plena pandemia do novo coronavírus, a prefeitura desembolsou R$ 15 mil — em recursos do Fundo Nacional de Saúde — para comprar e imprimir cartilhas informativas sobre prevenção à Covid-19, apesar de o Ministério da Saúde disponibilizar gratuitamente livretos sobre o assunto. O empresário Jandeilson Araújo Leite, dono da gráfica que celebrou o contrato com o município, recebeu a visita de uma equipe da Polícia Federal no dia seguinte. O motivo: no dia 1º de abril, ele havia firmado um contrato semelhante com a prefeitura de Aroeiras, município de 18 mil habitantes que comprou a impressão de nada menos do que 7 mil exemplares da mesma cartilha, chamada Coronavírus — O combate começa com a informação, a um custo total de R$ 279 mil. A gráfica de Leite era fantasma. As cartilhas não foram encontradas. Até o momento, o contrato com Aroeiras foi rompido, e a prefeitura foi alvo de busca e apreensão. A prefeitura de Lagoa de Dentro tampouco explicou por que optou por comprar a R$ 40 a unidade cada cartilha se podia usar as gratuitas oferecidas pelo Ministério da Saúde.

O caso dos dois pequenos municípios expõe a vulnerabilidade do Erário diante das más intenções de gestores públicos num período em que o fluxo de dinheiro aumenta e os gastos têm de ser elevados em razão da pandemia. São mais de 5 mil cidades habilitadas a gastar, e os mecanismos de controle nem sempre são eficientes. Nos estados, os problemas se repetem. No Rio de Janeiro, em Santa Catarina e no Pará, já houve busca e apreensão, bloqueio de bens e até prisões por causa de contratações suspeitas feitas por governos estaduais. Em São Paulo, foi instaurado um inquérito para investigar compras de mais de R$ 500 milhões feitas pelo governo estadual. O decreto de calamidade, editado em razão do novo coronavírus, dispensa muitas administrações de fazerem os procedimentos comuns de licitação. O mecanismo, criado para desburocratizar a máquina num cenário de emergência, nem sempre é usado de boa-fé.

O site de ÉPOCA mostrou, na última semana, que o governo de Helder Barbalho (MDB), no Pará, havia instalado respiradores que não funcionavam direito em hospitais do estado, comprados sem licitação. A importadora SKN do Brasil entregou 152 aparelhos de modelos diferentes daqueles pedidos em contrato — e que não eram indicados para tratar pacientes da Covid-19. O estado chegou a classificar como “mentirosas” as alegações contidas na reportagem, mas mudou a postura depois que o Ministério Público (MP) visitou as unidades para apurar as denúncias. No domingo, em regime de plantão judiciário, o governo do Pará pediu o bloqueio de R$ 25 milhões em bens de sócios e pessoas ligadas à empresa, alegando que as irregularidades não estavam em sua gestão, e sim na empresa fornecedora. O caso agora está sendo investigado pelo MP.

A mesma empresa também está envolvida em problemas no Rio. A SKN foi responsável pela importação de respiradores encomendados pela MHS Produtos e Serviços, que tinha um contrato de R$ 56 milhões para fornecer 300 aparelhos ao governo do estado, mas sinalizou que não entregaria os modelos prometidos. Glauco Octaviano Guerra, responsável pela MHS, foi preso na última quinta-feira em Belém. Segundo o colunista do jornal O GLOBO Lauro Jardim, Guerra estava em companhia de André Felipe de Oliveira da Silva, um dos sócios da SKN do Brasil, no momento da prisão. Na quarta-feira 13, Silva também foi preso pela Polícia Federal, em Brasília.

“O DECRETO DE CALAMIDADE, EDITADO EM RAZÃO DO NOVO CORONAVÍRUS, DISPENSA MUITAS ADMINISTRAÇÕES DE FAZEREM OS PROCEDIMENTOS COMUNS DE LICITAÇÃO. O MECANISMO, CRIADO PARA DESBUROCRATIZAR A MÁQUINA NUM CENÁRIO DE EMERGÊNCIA, NEM SEMPRE É USADO DE BOA-FÉ”

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Além do caso da MHS, dois subsecretários da área de compras do governo de Wilson Witzel, no Rio, foram exonerados e presos por suspeitas de irregularidades nas últimas semanas, na Operação Mercadores do Caos, da Polícia Federal. São Gabriell Neves e Gustavo Borges da Silva. Somando todas as compras de respiradores, 1.000 unidades que custaram R$ 183,5 milhões ao estado estão sob suspeita. Não só o atraso na entrega suscitou desconfiança, mas a polícia investiga também o valor de cada unidade: R$ 187.500, o preço cobrado pela MHS, é o dobro do praticado por fabricantes de respiradores. Além da MHS, as fornecedoras do aparelho A2A e ARC Fontoura também são investigadas e os representantes foram presos.

O secretário de Saúde do estado, Edmar Santos, reafirmou, nos últimos dias, que o problema era o atraso, e não o valor dos produtos, que hoje estariam mais caros, segundo ele, em razão do aumento da demanda. O governo do Rio já pagou cerca de R$ 33 milhões pelos respiradores. Em vídeos publicados recentemente na internet, Santos também vinha defendendo o contrato com a MHS, cujo dono foi preso. Segundo o secretário, após sucessivos atrasos, a empresa entregaria 97 respiradores ao governo no dia 8. Diante do não cumprimento do prazo, o rompimento do contrato com a empresa foi publicado no Diário Oficial. Ainda não se sabe o que exatamente os dois subsecretários presos fizeram de errado e como o estado será ressarcido pelos R$ 18,1 milhões já pagos à MHS pelos respiradores. Procurada por ÉPOCA, a secretaria estadual de Saúde do Rio informou que, após os problemas em contratos como o da MHS, todas as compras relacionadas à pandemia do novo coronavírus daqui em diante “serão feitas sem utilizar representantes comerciais, possibilitando tratar diretamente com os vendedores”, numa tentativa de dar mais “segurança e rastreabilidade” aos processos. O órgão também comunicou que busca reaver os valores pagos às empresas que não entregaram os produtos, e que criou uma força-tarefa com a Controladoria-Geral do Estado para “analisar todos os contratos firmados a partir de agora”.

Em Roraima, o governador Antonio Denarium (PSL) demitiu o secretário Francisco Monteiro Neto após um gasto de R$ 6 milhões em apenas 30 respiradores, ou seja, R$ 200 mil a unidade. Já o governador catarinense Carlos Moisés, também do PSL, recebeu dois pedidos de exoneração — do titular da Saúde, Helton Zeferino, e do secretário da Casa Civil, Douglas Borba — depois que o estado gastou R$ 33 milhões em 200 respiradores (R$ 165 mil cada). Além do preço elevado, os dois casos guardam mais uma semelhança: até o início desta semana, mais de um mês após os pagamentos feitos pelos governos estaduais, nenhum respirador havia sido entregue. O governo catarinense esperava receber as primeiras 50 unidades na quarta-feira 13.

“NO PARÁ, NO RIO DE JANEIRO, EM SÃO PAULO E EM SANTA CATARINA, SUSPEITAS DE IRREGULARIDADES NA COMPRA DE RESPIRADORES JÁ RESULTARAM EM INVESTIGAÇÕES, PRISÕES, APREENSÕES E AFASTAMENTO DE GESTORES PÚBLICOS”

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Em Santa Catarina, o Ministério Público e o Tribunal de Contas do Estado (TCE) encontraram indícios de fraude na licitação para a compra de respiradores, que teve como vencedora a Veigamed, uma empresa com endereços em Nilópolis, na Baixada Fluminense, e em Macaé, na Região dos Lagos, cuja dona, Rosemary Neves Araújo, trabalhou como motorista de ônibus e datilógrafa nos últimos anos. Investigadores encontraram indícios de que ela é sócia “laranja”. As conexões políticas da empresa se proliferam: o endereço onde fica o galpão da Veigamed, na Zona Oeste do Rio, pertence ao deputado estadual Marcello Siciliano (sem partido). Já o vereador Davi Perini Vermelho, o Didê (DEM), presidente da Câmara Municipal de São João de Meriti, é apontado pela investigação como representante da Veigamed. Além disso, a importadora usada pela Veigamed para trazer os respiradores é a empresa panamenha CIMA Industries, cujo representante no Brasil é Samuel Rodovalho, filho do bispo e ex-deputado federal Robson Rodovalho, à frente da Igreja Sara Nossa Terra. Os investigadores também apuram denúncias de pagamento de propina intermediado por Samuel junto a integrantes do governo de Santa Catarina.

Embora o estado tenha desembolsado os R$ 33 milhões pelos respiradores antes de receber os produtos, prática incomum na administração pública, a Veigamed ainda não entregou os equipamentos prometidos. Na segunda-feira, a empresa enviou ofício ao estado defendendo a troca do modelo oferecido por um inferior, sem aceitar uma readequação nos valores do contrato. O primeiro lote dos respiradores chegou ao aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, na noite da segunda-feira, em um voo vindo de Guangzhou, na China.

O procurador-geral do MP de Santa Catarina, Fernando Comin, reconhece o argumento — usado por diversos gestores estaduais — de que a variação de preços pré e pós-pandemia, assim como os diferentes costumes de mercados internacionais, dificulta as compras de itens essenciais como respiradores, boa parte deles vindos da China. No caso de São Paulo, uma investigação foi instaurada no final de abril porque procuradores verificaram que cada respirador dos 3 mil encomendados pelo estado custaria R$ 180 mil, quando o preço praticado normalmente seria metade disso. Contudo, ainda não foram encontrados indícios de irregularidades. “O mercado chinês opera numa lógica inversa à nossa”, explicou. “Você primeiro paga para depois receber.” Comin, no entanto, considera que o calor do momento — e a dispensa de licitação — não pode se tornar uma muleta para gestores da Saúde. No caso da compra dos respiradores pelo governo de Santa Catarina, o procurador-geral observa que MP e TCE não foram chamados para dar seu aval à contratação, que não foi acompanhada de seguro ou carta de fiança. O MP chegou a pedir a prisão temporária de Samuel Rodovalho e outros envolvidos na negociação da Veigamed, mas foi negada pela Justiça, que apenas autorizou mandados de busca e apreensão.

Escarafunchando a vida pregressa da Veigamed, investigadores encontraram indícios de superfaturamento em outros contratos, mesmo antes da Covid-19, como no caso de compras feitas pelo município de Itaboraí, no Rio, em 2015. Pacotinhos de gaze custavam até o dobro do valor visto em outros editais. Um pacotinho pode não ser nada. Mas 3 milhões deles superfaturados, que foi o que a prefeitura comprou da Veigamed, corroeram uma parte do dinheiro público que poderia, lá atrás, ter sido usada para equipar melhor suas UTIs com bons respiradores. Hoje, Itaboraí tem quase 600 casos de Covid-19 e mais de 30 mortes.

FONTE: ÉPOCA

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