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Presos vendem celas por até R$ 5 mil no Complexo do Curado, no Recife

Os sobrados são enfileirados um ao lado do outro. Cada andar tem um morador. O acesso ao piso superior é feito por escadas de madeira improvisadas. Graças a gambiarras elétricas, alguns deles dispõem de comodidades como frigobar, televisão e exaustor. O cenário lembra uma viela de favela. Mas os sobrados são celas do presídio Complexo do Curado, localizado, ironicamente, na Avenida da Liberdade, no Recife. Como qualquer imóvel privado, as celas viraram ativos valiosos num mercado imobiliário criado dentro do presídio. Quanto maiores forem a ventilação e a iluminação, maior é o valor de venda ou aluguel, afirma a assistente social Wilma Melo, uma das fundadoras do Serviço Ecumênico de Militância nas Prisões (Sempri). Há três décadas, Wilma dedica seus dias ao Curado, onde perdeu o marido,

um ex-detento. Ela acompanhou, desde o início, o crescimento da favela encarcerada. O metro quadrado mais caro, diz Wilma, ultrapassa R$ 2 mil – equivalente ao metro quadrado na periferia de São Paulo ou de um bairro classe média em Belém. Como troça, os presos apelidaram os sobrados de Minha Cela, Minha Vida, uma alusão a um dos programas de governo mais caros à presidente reeleita Dilma Rousseff. Eles foram construídos pelos próprios presos. Segundo o padre Wilmar Varjão, da Pastoral Carcerária, parte do material de construção é comprada com dinheiro das famílias dos presos. Chega em caminhões ou em carriolas.

Além dos sobrados, existe outra modalidade de cela: as casas de pombo. Ou tocas, como são chamadas no relatório geral do último mutirão carcerário do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). São buracos feitos pelos presos dentro das paredes, um ao lado do outro – como urnas num cemitério vertical. Cada buraco é equipado com um colchão e tem um dono. Para subir a eles, os presos usam escadas. O preço dos buracos, como os sobrados, tem variações. Com ventilação e luminosidade, pode custar até R$ 2 mil, afirma Wilma. Os presos, diz ela, não buscam conforto apenas para si próprios. Cada um deles quer um lugar melhor para receber a família nos dias de visita. A diária de um buraco chega a custar R$ 50.

Os presos que não têm poder ou dinheiro para comprar ou alugar um sobrado ou um buraco são obrigados a dormir no chão das celas, dos banheiros, dos pátios ou das BRs, apelido dado aos corredores do presídio – outra troça, alusão às siglas das rodovias federais. Em uma das vezes em que o advogado Fernando Delgado, da Clínica de Direitos Humanos da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, perguntou a um preso sobre a lotação de uma das celas, recebeu uma resposta confusa: “Aqui dorme cinco, mas conta 24 (sic)”. Delgado entendeu, depois, a matemática do presídio. O preso queria dizer que aquela cela tinha 24 presos, mas cinco haviam comprado o direito de dormir em colchões. Os outros ficavam no chão. Nos dias de visita íntima, aos sábados, redes e cabanas aramadas são enfileiradas no pátio. Cada um protege a própria intimidade com um lençol. As mulheres pernoitam no presídio.

O “pacto pela vida”

O Curado nasceu em 2012, com capacidade para 2.114 presos,  para substituir o presídio Professor Aníbal Bruno. O complexo foi criado com uma estrutura de três unidades independentes e muradas, cada uma com diretor, enfermaria, cozinha e escola. Um dos motivos para a mudança, segundo o governo de Pernambuco, era tratar os presos com “mais humanidade” e melhorar a organização.

A criação do Curado foi também uma resposta ao aumento da população carcerária em Pernambuco, um dos efeitos do Pacto pela Vida,  programa de segurança pública implementado pelo ex-governador Eduardo Campos (1965-2014). Vitrine do PSB, partido no comando de Pernambuco há oito anos, o Pacto, lançado em 2007, criou bônus salariais para os policiais que atingissem metas de apreensão de drogas e prisões preventivas. A taxa de homicídios do Estado caiu mais de 30%. Entre 2006 e 2012, também aumentou em 206% o número de encarcerados por posse de drogas. Um relatório do Ministério da Justiça, de novembro de 2012, diz que o Pacto tem pontos positivos, “mas é uma bomba de efeito retardado”. O CNJ, em outro relatório, de maio de 2014, diz que “a falta de investimento, a demora no julgamento processual e a manutenção da prisão de pessoas que cometeram pequenos delitos transformam as casas prisionais em verdadeiros depósitos de pessoas”.

Nos dias 8 e 9 de maio de 2013, a procuradora da República Carolina de Gusmão Furtado, acompanhada de outras autoridades, visitou o Curado. “Verificamos que a divisão do presídio em três unidades resumiu-se a uma simples separação murada, que em nada minimizou a questão da superlotação”, diz Carolina. Hoje, amontoam-se no Curado 7.031 detentos, pouco mais de um quinto da população carcerária de Pernambuco. Sobram presos – e faltam defensores públicos, promotores e advogados. “A Justiça de Pernambuco é muito problemática. É um quadro de quase caos”, afirma o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal. Nos mutirões feitos no Curado, o CNJ, não raras vezes, encontrou detentos com penas vencidas havia mais de cinco anos. Os presos, muitas vezes, não sabem nem quanto tempo ficarão atrás das grades. Em uma das inspeções feitas por autoridades federais no Curado, o então secretário de Ressocialização (Seres) de Pernambuco, coronel Romero Ribeiro, disse que não informava as previsões das penas aos detentos por receio de instabilidades no presídio. Ribeiro foi exonerado do cargo há dois meses.

O chaveiro
No Curado, os agentes penitenciários não entram nos pavilhões. O diretor do Sindicato dos Agentes Penitenciários de Pernambuco, Nivaldo Oliveira, diz que os agentes ficam em funções administrativas e na gaiola, a entrada do presídio. Em uma das visitas de monitoramento, entre os dias 26 e 27 de agosto de 2013, trabalhavam 16 agentes, ou um para cada 400 presos. O CNJ recomenda um para cinco. “O Curado é uma brincadeira de mau gosto do Estado. Nosso efetivo é uma vergonha”, diz Oliveira.

Em Leviatã, o filósofo Thomas Hobbes (1588-1679) afirma que o homem, no estado de natureza, impõe-se ao outro pela força, ferramenta para conquistar e manter o poder. Para evitar o estado de guerra, cria-se um contrato social, a base da filosofia política moderna. Todos abdicam de suas liberdades para que o eleito assegure paz e proteção a todos. Cinco séculos depois, o CNJ encontrou dentro do Curado o homem primitivo e o eleito de Hobbes personificados em uma só figura, o chaveiro. Num relatório de 2010, assim é descrito o chaveiro: “Um preso, geralmente condenado ou respondendo por crime de homicídio, que impõe a ordem e a disciplina no pavilhão… Relaciona presos a serem encaminhados aos médicos, psicólogos, advogados e assistentes sociais. É assessorado por um auxiliar e um mesário”.

O número de chaveiros é desconhecido. Nos 17 pavilhões oficiais há ao menos um, geralmente ligado a grupos de extermínio. Os carcereiros paraestatais gerenciam as celas e outras áreas, como a enfermaria e a cantina. São alçados aos cargos de chefia ao ser indicados por outros chaveiros, diz Wilma. Há denúncias de que presos recrutados pelo Estado para trabalhar na cadeia seriam chaveiros.

Cada chaveiro dita as próprias regras. Em geral, cobram, à parte, por material de limpeza e higiene pessoal e por idas à enfermaria e até mesmo ao banheiro, se o preso não tem condições de ir sozinho. O chaveiro decide qual preso pode ter assessoria jurídica e o horário das visitas.

O chaveiro tem, além disso, o poder de decidir sobre a liberdade de movimentação na cadeia. Nos presídios, existe a cela da disciplina. Em tese, apenas quatro homens deveriam permanecer ali por um determinado período. No Curado, até 70 presos ficam no isolamento por tempo indeterminado, afirma Delgado, de Harvard. Alguns dos presos confinados foram jurados de morte. Outros, descobertos delatores. E há os encaminhados pelo chaveiro. Como o chaveiro tem a prerrogativa de dizer quem está certo ou não, pode  atribuir mau comportamento a qualquer preso e mandá-lo para o castigo. ÉPOCA conversou com uma pessoa cujo parente foi para o castigo pelas mãos de um chaveiro. O parente, acusado de incitar violência, está há quatro meses no isolamento. A condição para a saída do confinamento – uma cela com uma única entrada de ar e uma bica – é o pagamento de R$ 2 mil ao chaveiro.

No relatório do CNJ de 2010, o chaveiro também é descrito como “o responsável pela venda de drogas e, não raro, é o traficante”. As drogas não entram pela porta do presídio, diz Wilma. Lá, o controle é severo. Os pacotes, bem como as armas, chegam por cima dos muros. Embora seja proibido por lei, o Curado está localizado no perímetro urbano do Recife. A proximidade de casas facilita o trabalho dos arremessadores. Depois de jogar a encomenda, eles são abrigados pelos vizinhos do presídio. A troca da guarda no presídio é uma das brechas. Além disso, cerca de 50% das guaritas em torno do presídio estão desativadas.

Dentro do Curado, buracos nos muros entre as unidades prisionais permitem que tanto drogas quanto facões circulem (confira nas fotos abaixo). O preso que não pode pagar pelo consumo da droga ou é jurado de morte ou pede ajuda para a família. Um pai de um preso disse a representantes do Ministério da Justiça, segundo o relatório de inspeção de novembro de 2012, que pagava o fumo e a sobrevivência do filho usuário de droga por depósito bancário. Os dados da conta do traficante chegavam por mensagem de celular. Para o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Pernambuco, Pedro Henrique Reynaldo Alves, “sem a droga, os presos não conseguem permanecer sem se rebelar”.

“Pior que Pedrinhas”

O Curado é pior que Pedrinhas”, diz Delgado. O Complexo Penitenciário de Pedrinhas, no Maranhão, ganhou destaque no ano passado com rebeliões em série e mortes violentas, como decapitações. Delgado é um dos cinco denunciantes que levaram, em 2011, o Curado à Comissão Internacional de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). Desde então, instituições em defesa dos direitos humanos contabilizaram 265 denúncias de atos violentos no Curado. Uma das promotoras que acompanharam o caso, Rosa Maria de Andrade, escreveu num relatório de outubro de 2012 que “atrocidades há muito vinham ocorrendo sem quaisquer providências”.

Em 2010, durante visita de monitores de ONGs de direitos humanos, um preso foi encontrado com as costas raspadas por faca e uma fratura exposta no braço esquerdo. Em um documento da Seres de 30 de outubro de 2012, um preso alegou ter sido espancado por agentes, disse que recebeu choques elétricos e foi violado com um cabo de vassoura. Num relatório do Ministério Público (MP) de Pernambuco, de 31 de outubro de 2012, aparecem denúncias de tortura e maus-tratos cometidos por agentes e chaveiros. Em 20 de junho de 2013, um preso morreu envenenado. No boletim de ocorrência, consta causa da morte desconhecida.

Porrete com dizeres “Direitos Humanos”  (Foto:  )

Em uma das inspeções feitas por Delgado, um porrete de madeira foi encontrado na área do presídio destinada à Polícia Militar. O porrete tinha arame numa extremidade e vinha com a inscrição “Direitos Humanos” (foto acima). O material foi entregue ao diretor do presídio. Segundo Delgado, o caso não foi solucionado. As fotos da apreensão constam no documento entregue à Comissão de Direitos Humanos da OEA. Como o Brasil não apresentou avanços significativos na solução dos problemas do presídio, o caso do Curado, em maio de 2014, subiu para a Corte Interamericana de Direitos Humanos, onde o país assumiu uma posição equivalente a de um réu. É uma situação vexatória, em que o país, em tese, passa a ser obrigado a cumprir as determinações da Corte para atenuar a superlotação, a falta de assistência jurídica, a violação de direitos humanos, entre outros problemas.

Para salvar a imagem do país, criou-se um fórum permanente dos governos federal e estadual sobre o Curado. A cada três meses, o governo brasileiro manda à Corte um relatório sobre os avanços feitos ou não. Na ata da reunião de 28 de agosto de 2014, o fórum disse ter verificado avanços no sistema de saúde e monitoramento dos presos. Caso não haja avanços, a diplomacia é acionada em busca de um acordo. Para os defensores de direitos humanos, manter o Brasil como réu é uma maneira de forçar a implementação das medidas. “Não vejo como a situação pode mudar sem uma intervenção federal”, afirma Delgado.

Há duas semanas, uma reportagem da TV Globo flagrou detentos do Curado portando celular e facões. O então secretário da Seres, Carlos Humberto Inojosa, pediu demissão. O novo secretário de Justiça e de Direitos Humanos de Pernambuco, Pedro Eurico, Pasta responsável pela Seres, assumiu em 2 de janeiro. Eurico diz desconhecer o comércio de celas e negou a existência da cela de isolamento. A ÉPOCA, anunciou revistas semanais nos pavilhões, alambrados de 6 metros nos muros, contratação de 162 agentes penitenciários, renovação do sistema de monitoramento atual – por ele considerado “ineficiente”–, revisão das máquinas de raios X e a criação de 3.700 vagas em presídios do Estado até 2016. Os casos de tortura até então sem solução, diz Eurico, serão investigados.

Mudanças no sistema prisional exigem muita transpiração – e dinheiro. Pernambuco tentou construir mais presídios em parceria público-privada, mas a empresa responsável faliu e o projeto parou. Em dezembro, o promotor Marco Aurélio Farias, coordenador de Cidadania e Direitos Humanos de Pernambuco, protocolou na Justiça estadual um pedido de interdição parcial do Curado. “Esperava do governo um sinal que não aconteceu”, afirma Farias. O juiz Luiz Rocha, da 1ª Vara de Execuções Penais do Recife, responsável pelo Curado, não demonstra muita pressa em julgar a ação. Diz que tem 17 mil processos para acompanhar e que não sabe se o Estado de Pernambuco sequer responderá ao MP. A Justiça deveria mostrar mais agilidade. Para o promotor Farias, Curado pode implicar uma sentença internacional sem precedentes para o Brasil. “O caso Curado pode extrapolar para um monitoramento do sistema prisional de Pernambuco e de todo o país pela Corte Interamericana”, diz Farias. Não é difícil entender por quê. O Curado expõe sem retoques as condições medievais de nossas cadeias.

Fonte: Época

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