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Disputa com Trump reforça nacionalismo e faz China rever estratégia externa

Xi Jinping, que vinha usando retórica cada vez mais assertiva sobre ascensão do país, é obrigado a confrontar riscos da dependência econômica dos EUA

Da prolífica fábrica de slogans do Partido Comunista da China , um dos mais repetidos desde que Xi Jinping assumiu a liderança, em 2013, foi “win-win” (ganha-ganha). Estampado em faixas e incluído em documentos, busca promover a ascensão da China como algo positivo para o mundo, e não uma ameaça. Mas a guerra comercial declarada pelo presidente dos EUA, Donald Trump , obrigou a China a rever seu plano de vôo, e preparar-se para uma longa turbulência — ou uma nova Longa Marcha, como disse Xi.

Durante 11 rodadas de negociação, a China engoliu em seco e manteve uma posição de moderação, achando que o embate caminhava para o seu final. Para muitos analistas, a verdade é que Pequim não levou Trump muito a sério. Até que no início de maio o presidente americano aumentou a pressão, ao anunciar mais tarifas sobre importações da China. O governo chinês respondeu na mesma moeda e foi além, numa virada retórica. O tom mudou, e o debate chegou à boca do povo.

— Não queremos uma guerra, mas a China é forte e saberemos resistir — diz Peng, 41, motorista de um aplicativo de transporte diante da arquitetura futurista de Binhai, cidade a 160 km de Pequim.

A imprensa estatal partiu para o ataque, invocando o velho espírito nacionalista contra abusos estrangeiros. Os artigos batiam quase sempre na mesma tecla: a pressão americana tem como objetivo deter a ascensão da China, e não corrigir “distorções” no comércio, como alega Washington.

— Se concordarmos com os argumentos de Washington, eles usarão outras desculpas para deter o desenvolvimento da China — disse Justin Yifu Lin Lin, ex-economista-chefe do Banco Mundial, à TV estatal CCTV.

A cartada agressiva dos EUA deflagrou impulsos nacionalistas, de filmes anti-americanos na TV estatal a grupos convocando o público a trocar produtos da Apple pelos da chinesa Huawei, alvo de boicote dos EUA e um dos símbolos da disputa. Enquanto isso, no outro lado da relação de amor e ódio dos chineses com os EUA, as lojas da Apple em Pequim continuam lotadas.

Racha no consenso

Por trás da confiança projetada pela China de Xi Jinping e o aumento do autoritarismo desde que ele chegou ao poder, há rachaduras no consenso aparente. Observadores ouvidos pelo GLOBO em Pequim entendem que a guerra comercial desgastou o prestígio de Xi, que atingiu o auge em março de 2018, quando o Congresso pôs fim ao limite do mandato de presidente. Há quem culpe a retórica assertiva de Xi sobre a ascensão da China por gerar inquietação no mundo. Num possível recuo, a imprensa estatal parou de mencionar um dos planos mais ambiciosos do governo, “Made in China 2025”, cujo objetivo é tornar o país líder mundial em setores de tecnologia avançada.

Uma das raras vozes críticas a vir a público foi a de Xu Zhangrun, professor de Direito da Universidade Tsinghua, em Pequim. Em uma série de artigos que circularam entre intelectuais, ele condenou o “culto à personalidade” de Xi e afirmou que a guerra comercial “revelou a “fragilidade” do governo, gerando “pânico nacional”. Os ataques levaram a universidade a suspender o professor e a abrir uma investigação contra ele.

Ainda que as fricções com o principal parceiro comercial da China causem insegurança, pânico talvez seja um exagero. Wang Wen, diretor do Instituto de Estudos Financeiros da Universidade Renmin, acredita que o medo do poderio americano se limite a uma parte da elite. A “vasta maioria das pessoas comuns” apoia a conduta do governo contra o “bullying” praticado pelos EUA, escreveu ele em seu site.

Alguns efeitos já são sentidos nos negócios, a começar pelo setor de tecnologia, em que há intensa sinergia entre os dois países, mas também rivalidade. Número dois de uma firma de software em Pequim, Huang, 36, conta que há três semanas o Facebook, seu maior cliente, o chamou para uma conversa e avisou que iriam interromper o contrato.

O desligamento foi fruto da pressão nos EUA contra a colaboração com chineses, segundo Huang, sobretudo nos casos em que há compartilhamento de dados. Resignado, o jovem que sonhava em ser roqueiro e deixou a guitarra para ganhar dinheiro diz que seguirá uma especialidade chinesa: adaptação e busca por outros mercados — a começar pelo interno.

“Determinação férrea”

No momento, a maior preocupação na China é que a guerra comercial provoque uma crise de confiança na economia. Muitas regiões não acompanharam o ritmo de desenvolvimento dos últimos 40 anos. O nível de emprego é considerado fator crucial para a estabilidade social e política. Ainda não há registro de abalos no mercado de trabalho, e o governo sinaliza com um pacote de incentivos para evitá-los. Mas dados oficiais mostram que a incerteza já reduziu o recrutamento de universitários recém-formados em setores como o financeiro e de internet.

Em sua última edição, o jornal do Partido Comunista Qiushi (buscando a verdade) reafirma que a meta continua sendo uma solução de benefício mútuo (ganha-ganha) com os EUA, mas reconhece na disputa um ponto de inflexão que definirá se a relação é de “confronto ou cooperação, portas abertas ou fechadas, monopólio ou competição, unilateralismo ou multilateralismo”.

Especialista em governança formado em Xangai e hoje professor da Claremont McKenna College, na Califórnia, Minxin Pei acha que a China será forçada a uma mudança estratégica. Para ele, o descolamento entre as duas maiores economias do mundo, defendido no governo Trump, também passou a ser considerado em Pequim.

“A guerra comercial expôs a vulnerabilidade estratégica criada pelo excesso de dependência dos mercados e tecnologias dos EUA”, escreveu Minxin no jornal South China Morning Post. “Xi Jinping não cometerá o mesmo erro novamente, nem nenhum outro líder chinês.”

“Precisando de amigos”

O possível rearranjo de forças espalhou nervosismo pela região. No recente Diálogo de Shangri-La, que reúne países da Ásia e do Pacífico, o temor de um abalo regional deu o tom. Ao lado de possíveis efeitos negativos para a região, como a desvalorização da moeda chinesa e até mesmo um confronto militar, a preocupação é de que uma nova Guerra Fria obrigue os países a escolher um lado.

De fato, Pequim tem mostrado interesse em atrair aliados na resistência aos EUA. O mais óbvio é a Rússia, onde a China tem uma parceria energética importante. Outro é a Índia, com a qual a China tem um histórico de desconfiança, mas que também anda insatisfeita com o protecionismo americano.

Em tempos de incerteza, há quem vislumbre possíveis ganhos para países que saibam navegar entre as duas potências. Na recente visita do vice-presidente Hamilton Mourão a Pequim, as deferências do governo chinês, incluindo um encontro com Xi Jinping, foram vistas em parte como um efeito do embate com os EUA. Afinal, comentou um diplomata brasileiro, os chineses “estão precisando de amigos”.

 

FONTE: O GLOBO

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Gomes

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