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STF absolve ré que furtou carne e condena homem por furtar xampu

No mesmo dia em que Gilmar Mendes absolve mulher acusada de furtar um pedaço de carne, Rosa Weber nega pedido de liminar a réu que furtou xampu

Um peso, duas medidas. Uma mulher que furtou um pedaço de carne e outras mercadorias no Rio de Janeiro foi absolvida de forma sumária pelo ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Gilmar Mendes. A sentença foi proferida na terça-feira (30), mesma data em que a colega de toga, a ministra Rosa Weber decidiu negar o habeas corpus a um jovem que furtou dois xampus no valor de R$ 10 cada, de um estabelecimento na cidade de Barra Bonita, no interior de São Paulo.

“Discutir casos como esses no STF escancara um judiciário punitivista e seletivo, com lentes diferentes para interpretar os casos”, afirma Marina Dias, diretora executiva do Instituto de Defesa do Direito de Defesa. “Ter este tipo de decisão em um contexto de pandemia expõe um completo descolamento da realidade.” Mas por que o mesmo princípio que vale para absolver um não vale para o outro?

No caso da mulher do Rio de Janeiro, Mendes invocou o princípio da insignificância para absolvê-la, uma vez que ela havia sido condenada pelo Tribunal de Justiça do Rio, com a sentença confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça (STF). Segundo o ministro, não seria razoável que o Direito Penal e todo o aparelho do estado-polícia e do estado-juiz fossem movimentados para atribuir relevância ao suposto furto do alimento e outras mercadorias avaliadas em R$ 135,73”.

O ministro avaliou que “não cabe ao Direito Penal, como instrumento de controle mais rígido e duro que é, ocupar-se de condutas insignificantes, que ofendam com o mínimo grau de lesividade o bem jurídico tutelado.” Ele só poderia intervir, em sua análise, quando os outros ramos do direito demonstram ineficácia para prevenir práticas de delitos.

O fato ocorreu, segundo defensor público e coordenador de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Emanuel Queiroz, em julho de 2018, quando uma mulher, cozinheira e negra, foi acusada de furtar R$ 135,73 em alimentos de um supermercado em Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro. De acordo com o defensor, foi estipulada a fiança no valor de um salário mínimo e ela teve o direito de responder o processo em liberdade.

“Ela foi absolvida na primeira instância, o Ministério Público recorreu, a Defensoria impetrou um HC no STJ e depois no STF. Então, Gilmar Mendes aplicou o princípio da insignificância”, afirma Queiroz. Nesse caso, o princípio pode ser aplicado, segundo o advogado, por quatro fatores: conduta minimamente ofensiva, ausência de periculosidade da pessoa acusada, reduzido grau de reprovabilidade e lesão jurídica inexpressiva.

Na decisão de Rosa Weber, a ministra negou o pedido de liminar a um jovem que furtou dois cosméticos para que ele pudesse cumprir penas alternativas. O caso também tramita no STJ, onde o ministro Félis Fischer decidiu monocraticamente contra o réu. A defesa do jovem, representada pelo advogado Lucas Marques e pelo estudante de direito Gustavo Altman, pedia que a ministra revertesse a decisão. Porém, em sua decisão, endossou as manifestações anteriores.

“O argumento que nega a liberdade provisória é pelo fato dele ser reincidente e ser considerado um risco para sociedade. Ele foi considerado um risco à ordem pública. Afirmou-se que ele pode voltar a cometer novos furtos. Mas existem casos muito mais graves que representam risco efetivo à vida das pessoas”, afirmou Gustavo Altman. “O valor, porém, é irrisório. Não teríamos que acionar a máquina do Direito Penal para um caso com esse.”

Segundo o advogado, o homem foi condenado em primeira instância a três anos de prisão e cumpre pena em uma penitenciária da cidade de Bauru. “Ele não teve o direito de responder o processo em liberdade. É importante considerar que ele pode pegar uma pena que nem sequer o leve ao regime fechado”, diz Altman. De acordo com a defesa, a decisão de Weber demonstra um clima de insegurança jurídica nos tribunais. “A conclusão dos casos depende de qual ministro vai analisar.”

Semelhantes, porém diferentes

Embora os casos tratem de crimes de furtos e envolvam pessoas em situação de vulnerabilidade, os processos têm diferenças importantes a serem consideradas. “O HC pedido no caso do homem de São Paulo não fala sobre o trancamento da ação penal, ou seja, é apenas para garantir o direito de responder em liberdade”, afirma Dias. “Nosso pedido não era de absolvição, era pela soltura provisória. Mas, o mesmo argumento de Gilmar Mendes poderia ser utilizado por se tratarem de furtos insignificantes”, diz Altman.

No caso da mulher acusada de furtar alimentos no Rio de Janeiro, a Defensoria entrou com um habeas corpus para interromper a ação penal com base no princípio da insignificância. “Este princípio olha para a necessidade de se movimentar o aparelho do Estado e o judiciário em situações que não justifiquem este tipo de ação”, diz a diretora do IDDD. “O Direito Penal deve se ocupar de situações realmente graves, até por ser uma forma violenta de intervenção na vida das pessoas.”

Endossar o argumento das manifestações anteriores de que o homem representa um risco à sociedade porque ele poderia voltar a delinquir é, segundo Dias, uma forma de afrontar a presunção da inocência. “A Ministra não enfrenta questões importantes como as medidas cautelares cabíveis, individualização, princípio da insignificância.”

O que é insignificante?

O uso do princípio da insignificância, trata-se de uma discussão complexa e sem consenso no direito. “Existe uma diferenciação muito clara do que é direito penal do autor e do fato”, explica Queiroz. “No primeiro, o Estado identifica as pessoas não pelo que ela praticou, mas pelo que ela é. direito penal do autor é de índole segregacionista contra um grupo de pessoas.”

Depois da Segunda Guerra Mundial, o defensor afirma que o Direito Penal do autor é deixado de lado. “A pessoa não é penalizada pelo que ela é, mas pelo fato, não pela origem dela, mas sim pelo que ela fez, isso que interessa ao estado. Há uma evolução da sociedade que passa a utilizar o direito penal do fato.”

No entanto, ainda assim ele reforça que não existe um conceito objetivo de periculosidade e a vida pregressa das pessoas continua sendo utilizada para embasar as decisões jurídicas. “Os antecedentes ainda são um vetor completamente autoritário ligado à vida penal do autor, segregacionista e discriminatório. Os objetos da malha do sistema de justiça criminal são as pessoas mais desfavorecidas.”

Segundo o defensor público, o cidadão que será excluído pelo Direito Penal é também aquele que mais precisa do Direito Estatal para superar as dificuldades que a vida lhe impõe. “O próprio Supremo já aplicou o princípio da insignificância em casos de pessoas reincidentes. As decisões judiciais no brasil não têm um parâmetro de julgamento. Existe um decisionismo em que os julgadores se afastam do direito e colocam seus juízos de valor na frente.”

A justiça, o sistema prisional e a covid-19

Para a diretora do IDDD decisões como a da ministra Rosa Weber demonstram o peso que se dá aos crimes patrimoniais no país. “Não se pode desconsiderar a seletividade no sistema de justiça criminal, ela fica escancarada”, diz Dias. “Para se ter ideia do impacto deste tipo de decisão basta olhar para o perfil da população prisional brasileira, composta por presos provisórios e por uma grande maioria de acusados de tráfico de drogas e crimes de roubo ou furto.”

A decisão se torna ainda mais grave no contexto de pandemia que atravessa o país e o mundo. “O sistema prisional não dá condições dignas para que se cumpram penas. Nesse momento de um elevado número de infecções por covid-19, este tipo de decisão é um deslocamento da realidade.”

No dia 17 de março, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) emitiu uma recomendação a tribunais e magistrados para a adoção de medidas preventivas à propagação do novo coronavírus no sistema de justiça penal e socioeducativo. Entre outros aspectos, a recomendação orienta o Judiciário a reduzir o fluxo de ingresso no sistema prisional e socioeducativo. “Essa resolução do CNJ traz expressamente a decisão de garantir a liberdade de pessoas que cometeram crimes sem violência ou grave ameaça”, afirma Dias.

Para Altman, o órgão reconhece as condições insalubres das prisões superlotadas do país. “Isso é uma bomba relógio. Por ser um ambiente lotado e fechado, o risco de infecção é muito maior. Funcionários voltam para suas casas e podem levar o vírus para fora”, afirma. “O poder judiciário acaba reconhecendo uma pena de morte por omissão. A pena de privação de liberdade não pode ser igual à pena de morte.”

FONTE: R7.COM

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Marcio Martins martins

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