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Decisão de Toffoli pode comprometer operação que sinalizou fraudes em prefeituras pelo Brasil

Investigação apontou R$ 2 bilhões em saques suspeitos, feitos em espécie na boca do caixa

Quando decidiu, solitariamente, suspender todos os processos e inquéritos que utilizam dados bancários compartilhados sem autorização da Justiça, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, dificilmente fazia ideia da dimensão da própria decisão. Da burocracia de uma Suprema Corte em recesso saiu a determinação, por parte de seu presidente plantonista, para que as investigações fossem paralisadas, em especial a que atinge o filho zero um do presidente da República, o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ).

O ministro interrompia ali, em uma canetada, a rotina de combate à lavagem de dinheiro que ganhou corpo no Brasil nas últimas duas décadas. Um caso específico, detalhado agora por ÉPOCA, permite compreender o significado do despacho de Toffoli para além das grandes operações da Polícia Federal (PF): o das prefeituras pegas com saques em espécie na boca do caixa, num valor superior a R$ 2 bilhões — a corrupção corriqueira que ocorre no Brasil fora das grandes lentes de repercussão.

A decisão do ministro do STF jogou a favor de gestores de quase 300 prefeituras, em 25 estados, que movimentaram recursos públicos federais em espécie, com indicativos de que os saques na boca do caixa tenham sido irregulares. Os saques bilionários ocorreram entre 2003 e 2015 e, após os primeiros sinais de alerta, passaram a ser investigados pelo Ministério Público Federal (MPF) e pela PF.

O instrumento que permitiu detectar os saques nas prefeituras foi o mesmo que permitiu que se conhecesse Fabrício Queiroz, o ex-motorista e ex-assessor de Flávio Bolsonaro responsável por movimentar R$ 1,2 milhão em suas contas bancárias, com saques e depósitos que passavam, de alguma maneira, por personagens do gabinete do patrão. Os sinais de movimentações atípicas de recursos, com indícios de lavagem de dinheiro, apareceram nos relatórios de inteligência financeira, os chamados RIFs, elaborados pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). São esses relatórios os principais alvos da decisão de Toffoli.

“OS RELATÓRIOS DO COAF APONTARAM SAQUES EM ESPÉCIE NAS CONTAS DE 299 PREFEITURAS, EM VALORES QUE VARIAVAM DE R$ 95 MIL A R$ 78 MILHÕES”

Um RIF sistematiza informações a partir dos dados que chegam ao Coaf, um órgão que funciona há 21 anos, por força da lei de combate à lavagem de dinheiro, vigente desde 1998. Bancos e outras instituições financeiras são obrigados a comunicar operações que considerem suspeitas e também saques ou depósitos superiores a R$ 50 mil. Neste último caso, a presença de outros elementos pode apontar para a ocorrência de lavagem de dinheiro.

Foi um desses RIFs, encaminhado ao Ministério Público no Rio de Janeiro, que detalhou as movimentações de Queiroz. E foram 299 RIFs, de um total de 436 analisados, que apontaram saques em espécie em prefeituras com indícios de irregularidades, o que motivou a abertura de procedimentos de investigação pelo MPF e de inquéritos pela PF.

Os RIFs são um ponto de partida que permite a procuradores da República e a delegados da PF darem início a uma investigação, com a solicitação de novas diligências, como o depoimento de uma pessoa que fez um saque suspeito ou a quebra de sigilo bancário solicitada à Justiça. Toffoli interpretou que processos e inquéritos só podem utilizar RIFs que informem “montantes globais”, sem pormenorizar os dados de uma eventual movimentação bancária suspeita. Ocorre que um relatório do Coaf segue regras claras definidas em lei e recomendações internacionais, emitidas pelo Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (Gafi/FATF), uma entidade internacional criada há 30 anos por países-membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e da qual o Brasil faz parte.

Se a decisão de Toffoli já vigorasse nos últimos anos, não teria sido possível descobrir o caso do ex-motorista Queiroz, tampouco saber o que centenas de prefeituras estavam fazendo com dinheiro público repassado pela União. Ao recorrer contra a decisão do presidente do STF, no último dia 23, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, elencou outros casos em que o detalhamento dos relatórios de inteligência do Coaf foi decisivo para as investigações: a ação penal do mensalão petista; o primeiro caso da Lava Jato que resultou em condenação pelo STF, envolvendo o ex-deputado federal Nelson Meurer (PP-PR), condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro; o flagrante das malas de R$ 51 milhões de Geddel Vieira, ex-ministro de Michel Temer; a Lava Jato no Rio; as movimentações suspeitas do médium João de Deus, denunciado por estupros sucessivos. Em todos esses casos, havia um elemento comum: um RIF.

“O simples fato de alguém ser mencionado num RIF não induz, por si só, a instauração de uma investigação contra si. Apenas são adotadas medidas investigativas a partir de RIFs quando efetivamente há indícios robustos da prática de delitos”, escreveu Dodge no recurso contra a decisão de Toffoli. Para ela, o modelo em vigor evita “investigações infundadas”, uma vez que deixam de existir pedidos de quebra de sigilo bancário de pessoas que não são suspeitas de crimes. A determinação do ministro do STF pode mudar esse cenário, segundo a procuradora-geral.

O conjunto de RIFs que apontou os R$ 2 bilhões em saques em espécie em quase 300 prefeituras, nos quatro cantos do país, levou a uma frente de investigações para apurar o real destino do dinheiro, o que segue em curso no MPF e na PF. Esses saques variavam de R$ 95 mil a R$ 78 milhões, conforme a realidade de cada prefeitura, e seguiam uma lógica, segundo investigadores: quanto mais pobre o município, maior a incidência de movimentação de dinheiro vivo.

A partir do encaminhamento dos RIFs pelo Coaf, foram instaurados quase 200 inquéritos. Mais de 100 já resultaram em medidas cautelares, como uma quebra de sigilo, para que se detecte o real destino do dinheiro sacado. Tramitam na PF outros 87 inquéritos. Duas denúncias já viraram ações penais — os investigados passaram à condição de réus — e três denúncias ainda não foram recebidas. Quinze procedimentos foram arquivados até agora.

Uma das denúncias feitas pelo MPF exemplifica como os relatórios do Coaf foram decisivos para que a investigação sobre o destino do dinheiro avançasse. A denúncia é assinada pela procuradora regional da República Raquel Branquinho, braço direito de Dodge na Procuradoria-Geral da República (PGR), responsável pelas investigações criminais junto ao STF. Branquinho participou da elaboração do recurso da PGR contra a decisão de Toffoli. Em julho de 2015, ela denunciou o então prefeito de Coelho Neto, no Maranhão, Soliney de Sousa e Silva, a mulher, os três filhos do casal e dois empresários por lavagem de dinheiro.

O ponto de partida da investigação aberta pela PF foi um RIF que identificou saques em espécie das contas da prefeitura no valor de R$ 3,7 milhões, entre 2009 e 2011. Dois empresários foram identificados como sacadores das contas, e, conforme a denúncia, empresas de fachada da dupla foram contratadas para dissimular repasse de dinheiro à família do então prefeito. “Os denunciados ocultaram e dissimularam a origem, localização e propriedade de parte do dinheiro sacado das contas da prefeitura por meio de transferências bancárias entre os sacadores e o prefeito, seus filhos e esposa”, cita a acusação.

Além de fornecer dados sobre os saques em espécie, o Coaf também informou movimentações financeiras atípicas dos envolvidos, com uma incompatibilidade entre patrimônio e transação de recursos. O RIF embasou um pedido de quebra de sigilo bancário e fiscal, o que foi autorizado pela Justiça. Descobriu-se, então, que houve desvios até mesmo da conta que recebera recursos públicos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb). Parte do dinheiro sacado acabou transferida para os filhos e a mulher do prefeito, no valor de R$ 1 milhão, segundo a denúncia do MPF. Esse detalhe também foi possível descobrir graças aos RIFs do Coaf.

Na denúncia, Branquinho pede a condenação do ex-prefeito por crime de lavagem de dinheiro e por desvio de recursos públicos, além de sua inabilitação por cinco anos para o exercício de cargos públicos. A procuradora também pede uma indenização dos danos causados a Coelho Neto, no valor de R$ 2,1 milhões. A defesa do prefeito disse que não há razão nem provas que justifiquem a denúncia. De fato, se os RIFs forem inviabilizados, haverá menos provas que embasem a decisão. O prefeito terá um pouco de razão.

FONTE: ÉPOCA

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Marcio Martins martins

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