Em Linhas Gerais

Na esteira da despedida o negócio é ir de crônica sabatina – por Gessi Taborda

FILOSOFANDO

Entre o governo que faz o mal e o povo que o consente há certa cumplicidade vergonhosa.” VICTOR HUGO (1802/1885), escritor (romancista), poeta, dramaturgo e estadista francês. Autor de “Os Miseráveis” entre outras obras clássicas da literatura mundial.

HOJE É CRÔNICA

Como nos aproximamos do fim do Alto Madeira (previamente anunciado pelo próprio jornal em suas últimas edições), antes do texto da despedida aos leitores do hebdô, aproveitemos o sábado para tamborilar crônicas  nesse teclado já bastante desgastado. É deixemos de lado um pouco essa política mesquinha e triste, dominado pela mediocridade dos desonestos viciados em corrupção para contar essa história, no mínimo engraçada.

SE FOSSE TRAIÇÃO ERA MELHOR

A mulher do importante deputado saído das bimbocas do grotão onde chegou a ser um prefeito medíocre mas muito admirado pela maioria dos medíocres habitantes começou a viver em grande desconfiança do consorte, a ponto de nem acreditar mais nos seus ensaiados gritos de “Aleluia!”, que praticou tanto quando ainda no seu estilo campesino era pastor de ovelhas… Zizinha não poderia imaginar que depois de tantos anos curtindo o bem bom do mundo político onde o marido ganhou novas manias e nem parecia mais o capiau antigo iria perder o sossego.

Décadas após um período de pobreza própria de quem vivia no roçado, Zizinha não tinha motivo forte para desconfiar do velho marido, tão dedicado à família, apesar da forte influência que podia perceber na vida dele por parte de uma potranca carinhosamente conhecida como Irma, a La Douce.

DETALHE DO PIJAMA

Dona Zizinha passou a assuntar uma mudança de hábito. O marido passara a mudar o pijama toda semana, precisamente às quartas-feiras – antes só o trocava quando a mulher ameaçava não deixá-lo mais entrar em casa. O pacote de brilhantina voltou a frequentar a velha cômoda, depois de quase duas décadas esquecido.

Também algumas roupas e as sandálias franciscanas foram desentocadas do guarda-roupas e postas ao sol para tirar o cheiro forte de naftalina. Além disso, ele – que quase nunca saia, sempre deitado numa rede no fundo de um quarto escuro ou perdido entre as roseiras do jardim, com um rádio de pilha nas mãos –, de uma hora para outra, deu para escapulir pelas esquinas, ir demais à padaria e aos botecos.

FALANDO NO SONO

Dona Zizinha sondava através de arrodeios e conversas perdidas, procurando uma falha. Depois passou a vigiar-lhe o sono e ver se ele falava alguma coisa compreensível em meio àquele emaranhado de palavras vazias. Por fim, perdeu a paciência e foi direto ao assunto: perguntou, exasperou-se e ameaçou ceninhas de ciúmes se não soubesse o que se passava. Nada, o marido ficava mais esquivo e continuava a sair, agora usando o genro como desculpa.

Quando Dona Zizinha resolveu agir já fazia três anos das mudanças íntimas, de barbeado todo dia, da loção de alfazema para dormir, dos suspiros nas tardes longas; tudo isso bem vigiado pela mulher. Primeiro conversou com as filhas, que a acalmaram dizendo que talvez fosse a caduquice chegando; depois consultou as vizinhas e comadres, que já tinham percebido e cada uma tinha uma opinião.

INFLUÊNCIAS

Dona Luíza achava que os amigos de outrora era quem o estavam influenciando; Dona Mazé só desconfiava daquele zelo todo; mas comadre Verônica foi quem tinha certeza de que era mulher na vida dele, podia ir atrás; fosse que não se arrependeria. Por fim, disse ter ouvido falar no rádio em um detetive particular, infalível nesses casos, era só escutar o programa da tarde, anotar o telefone e agir. Fosse sem demora, senão seria tarde.

SIGILO PROFISSIONAL

O tempo passava e ela não se decidia, tinha medo, tergiversava quando as amigas davam conselhos. Um dia, em segredo, ouviu o rádio a tarde toda, anotou o telefone e ligou: o detetive, respeitosamente, pediu que lhe fizesse uma visita em seu escritório, sem compromisso, para obter mais detalhes antes de agir, viesse mesmo, haveria desconto e sigilo profissional.

Depois de voltar várias vezes da porta do escritório, ela resolveu entrar: conversou timidamente sem levantar a vista, pediu por amor de Deus que ele não falasse para ninguém, se despediu trêmula e desapareceu entre as árvores da praça em frente.

INVESTIGAÇÃO

Após um mês e meio de investigação, o detetive chamou Dona Zizinha, acalmou-a com um copo de água e açúcar, teceu os pormenores de seu trabalho e concluiu com ares de preocupação: – Seu marido está frequentando um motel todas as quintas-feiras, vai no carro do seu próprio genro. Mas… em todos esses anos, nenhum porteiro, nenhum vagabundo que vagueia pelas imediações, dá notícia de mulher alguma… ele entra só. Nem se identificou durante todo período da investigação alguma companhia do tipo Irma.

E após muito bate-boca – o detetive querendo ir adiante, Dona Zizinha querendo recuar, as vizinhas e comadres a incentivando a continuar – resolveram armar um flagrante. Planejaram, distribuíram gorjetas para os porteiros do motel, com uma discritude de missa de sétimo dia. Numa quinta-feira à tarde seguiram, o detetive à frente com uma máquina fotográfica, Dona Zizinha (entre furiosa e atônita) e comadre Verônica como testemunha escolhida pelas vizinhas e comadres.

DEBAIXO DO LENÇOL

Quando o porteiro abriu a porta e o trio adentrou apressado o quarto de motel, ninguém entendeu a solidão desprotegida do velho Antônio da Luz. Ele puxou para cima de si o lençol, cobrindo a nudez completa, e gritou com os olhos esbugalhados que pelo amor de Deus, ele não traía a mulher. Só depois de minutos de hesitação e tremedeira foi que o detetive arrancou com força o lençol de cima dos dois volumes trêmulos, deixando todos atônitos com a cena: O velho jazia parado, ao lado uma enorme boneca de plástico, daquelas infláveis.

Do desenlace só resta uma mínima parte das aposentadorias dos dois velhos – a maior parcela ficou com o detetive – e a vergonha irada de Dona Zizinha, que segredou, humilhada, às comadres, que preferiria que seu marido a tivesse traído com uma mulher de carne e osso do que com aquele monte de plástico.

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